A adolescência é um período de transição entre infância e vida adulta identificado como de extrema relevância para o desenvolvimento e consolidação da personalidade. A fase se caracteriza pela turbulência emocional que acompanha as transformações biológicas, físicas e psicossociais relacionadas à integração da identidade e à necessidade de ajuste entre as tendências egoístas individuais com as expectativas culturais da sociedade que lhe são próprias.
Na montanha-russa emocional da adolescência, alguns jovens encontram na autolesão um refúgio doloroso, mas silencioso. Como compreender e lidar com isso? A autolesão é geralmente definida em referência a comportamentos auto agressivos que são infligidos sem intenção suicida, tais como cortes, queimaduras ou arranhões. A prática entre adolescentes levanta questões sobre sua natureza: seria uma manifestação normal da instabilidade típica do período ou indicativo de patologias subjacentes? Este artigo busca informar e refletir sobre o assunto, tomando como base os estudos científicos sobre o tema e a experiência clínica da autora.

Características da Autolesão na Adolescência
A autolesão não suicida (ALNS) é definida como o ato intencional de ferir o próprio corpo sem a intenção de morrer. As lesões podem ser superficiais ou profundas e são frequentemente utilizadas como uma forma de lidar com emoções intensas ou aliviar a dor emocional.
Estudos revelam que a prevalência de ALNS em adolescentes varia globalmente, com taxas significativas em diferentes contextos culturais e sociais. Essa variação ocorre devido a diversos fatores, como os métodos de pesquisa utilizados e as populações estudadas. Ademais, por ser um comportamento frequentemente ocultado, as taxas de prevalência encontradas podem ser subestimadas em relação à sua ocorrência real.
Em algumas culturas, como rituais de passagem ou demonstrações de luto, a autolesão ou a automutilação pode ser vista como expressão tradicional, com significados específicos dentro daquele contexto cultural. É crucial distinguir práticas culturais de e comportamentos de risco, uma vez que rituais tradicionais possuem regras e acompanhamento, enquanto a comportamentos psicopatológicos são frequentemente solitários, acompanhados de sofrimento e prejudiciais ao indivíduo.
A prevalência média mundial na vida de comportamentos de ALNS é de aproximadamente 22% entre diferentes culturas. Adolescentes mais jovens são mais propensos em comparação aos mais velhos. E as taxas são muito maiores em populações clínicas.
Os métodos usados naALNS são variados e incluem cortes, queimaduras, arranhões e golpes contra objetos. Esses comportamentos geralmente ocorrem em áreas do corpo que podem ser facilmente escondidas, como pulsos, braços, pernas e abdômen, permitindo que os adolescentes escondam as lesões de familiares e amigos.
Métodos comuns de autolesão
- Cortes: Utilização de objetos afiados (lâminas, facas, cacos de vidro) para cortar a pele.
- Queimaduras: Aplicação de fogo, cigarros, objetos quentes ou produtos químicos na pele.
- Arranhões: Utilização de unhas, objetos pontiagudos ou superfícies ásperas para arranhar a pele, causando lesões superficiais.
- Pancadas: Golpes contra paredes, objetos ou o próprio corpo, resultando em hematomas, fraturas ou outros ferimentos.
- Perfurações: Utilização de agulhas, alfinetes ou outros objetos para perfurar a pele.
- Mordidas: Morder a própria pele, causando lesões e hematomas.
- Outras formas: isso inclui formas menos comuns, como ingestão de substâncias tóxicas, quebra de ossos, etc.
Fatores psicológicos relacionados às autolesões na adolescência
Diversos fatores contribuem para a manifestação da autolesão na adolescência, incluindo aspectos sociodemográficos, individuais e psicossociais. Os estudos revelam que a ALNS está ligada a múltiplas funções psicológicas, como dificuldades no manejo de problemas e emoções, além de aspectos relacionais.
Do ponto de vista psicológico, a autolesão geralmente serve como uma estratégia maladaptativa (problemática) de regulação emocional, permitindo ao adolescente expressar ou aliviar emoções intensas, como raiva, tristeza ou frustração. Pode funcionar como uma forma de sentir algo em meio a sentimentos de vazio ou dissociação. A ALNS pode também servir como autopunição, como modo de evitar castigos de outras pessoas e obter controle da situação.

Casos de autolesão na adolescência
“Me corto para me sentir viva”, disse Paula, uma paciente com 19 anos atendida por mim. A ALNS servia para tirá-la do estado “anestesiado” que tomava conta da sua experiência emocional quando se sentia rejeitada ou abandonada por pessoas próximas, em quem depositava altas expectativas de compreensão, amor, presença e suporte emocional.
Jonas, um adolescente tímido de 18 anos, começou a se arranhar os braços após o término de um relacionamento amoroso. Ele se sentia rejeitado e incompreendido, e a autolesão se tornou uma forma de aliviar e expressar a dor emocional que ele sentia. Sua mãe percebeu as lesões e o incentivou a buscar ajuda psicológica.
Ana sempre foi uma aluna dedicada e popular, mas nos últimos meses tem se sentido sobrecarregada com as expectativas dos pais e a pressão para escolher uma faculdade. Relata dificuldades em expressar suas emoções e se sente incompreendida pelos amigos e familiares. Há cerca de seis meses, começou a se queimar com cigarros quando se sente muito ansiosa ou triste. Nega ideação suicida, mas expressa medo de “perder o controle” e se machucar gravemente.
Autolesões como pedidos de ajuda
Embora os comportamentos de autolesão tendam a serem repetidos em situações semelhantes, por vezes podem ser ocasionais. Como qualquer sintoma psicopatológico, a frequência e a intensidade do comportamento assim como os pensamentos e fantasias associados devem ser considerados quando se trata de avaliar a gravidade do quadro e a necessidade de tratamento.
É necessário ressaltar que mesmo quando esporádico o comportamento de ALNS não deve ser normalizado. Pesquisas mostram que os adolescentes que se envolvem em comportamentos autolesivos são mais predispostos a apresentar um ciclo de enfrentamento desadaptativo posterior, mesmo aqueles que praticaram ALNS para o alívio do estresse, de modo não regular.
A ALNS é um sinal de sofrimento psicológico que ultrapassa a capacidade do indivíduo de tolerar. O comportamento autolesivo requer atenção e pode ser indicativo de patologias já existentes ou em desenvolvimento (como transtornos do humor ou da personalidade), além de fator de risco para agravos de saúde mental na idade adulta jovem.
Autolesão e suicídio
Autolesões não suicidas devem ser distinguidas de comportamentos suicidas. Por definição, a autolesão não é uma tentativa de suicídio. Embora possa ser perigosa e levar a lesões graves, o objetivo principal da ALNS não é morrer.
Por outro lado, ALNS podem se relacionar com aspectos da tendência ao suicídio. Adolescentes que praticam ALNS e adolescentes suicidas compartilham características como: dificuldades na regulação das emoções, histórico de negligências e abusos, problemas familiares e baixa auto-estima.
É ainda, é importante notar que embora autolesão e comportamento suicida sejam fenômenos distintos, eles não são totalmente independentes. Adolescentes que se envolvem em ALNS têm um risco aumentado de tentar suicídio do que os demais, especialmente se não receber ajuda adequada. Desse modo, entende-se que a identificação e o tratamento precoces da ALNS podem ser uma forma de prevenir o suicídio em adolescentes e jovens adultos.
Personalidade e diagnósticos associados
A ALNS entre adolescentes frequentemente coexiste com outras condições clínicas, sugerindo a presença de perturbações de personalidade subjacentes ou transtornos associados. A Estudos indicam uma associação significativa entre ALNS e transtornos como depressão, ansiedade, transtornos alimentares e, especialmente, o transtorno de personalidade borderline. O consumo abusivo de álcool e drogas é também associado.
No caso do transtorno de personalidade borderline (TPB), características como instabilidade emocional, impulsividade e relacionamentos interpessoais tumultuados podem predispor o indivíduo à autolesão como uma forma de lidar com o sofrimento psíquico e tentativa de regulação das emoções negativas. Estudos indicam que a ALNS é um comportamento comum em indivíduos com TPB, sendo que cerca de 70% dos pacientes com TPB apresentam histórico de ALNS. Essa associação pode ser explicada pelas dificuldades destes pacientes lidar com emoções intensas e desagradáveis, como raiva, tristeza, ansiedade e vazio, sua impulsividade e instabilidade nos relacionamentos. Embora não seja característica exclusiva do TPB, as ALNS nestes indivíduos são indicativos de risco aumentado para o suicídio.
Fatores de risco da autolesão
As ALNS ocorrem com maior frequência entre adolescentes mais jovens, do sexo feminino, que sofreram abuso físico, abuso sexual e bullying e que enfrentam algum término de relacionamento significativo. Fatores familiares como baixa qualidade de relacionamento com a mãe, fraco apoio familiar e psicossociais, como baixo nível socioeconômico e baixa escolaridade são fatores de risco. Baixa autoestima, autocrítica elevada, dificuldades para identificar e expressar emoções (mentalização) são fatores de personalidade que predispõem à ALNS.
A terapia psicodinâmica baseada na mentalização para autolesão adolescente
O tratamento de comportamentos auto lesivos na adolescência requer intervenções psicoterapêuticas que abordem o funcionamento global da personalidade e promovam estratégias saudáveis de enfrentamento da angústia interna, das frustrações relacionais e das adversidades da vida.
A abordagem psicodinâmica foca nas relações interpessoais e nos padrões emocionais do indivíduo, ajudando o adolescente a compreender e modificar dinâmicas relacionais disfuncionais que podem contribuir para a autolesão. Por meio de uma postura terapêutica genuína, empática e não crítica o terapeuta está atento o nível de funcionamento do paciente para combinar estratégias dirigidas à tomada de consciência sobre o próprio comportamento com estratégias de mentalização, focadas na identificação, nomeação e expressão das emoções e na capacidade de tolerar e manejar angústias profundas. Com o autoconhecimento e a ampliação da capacidade do indivíduo de entender os estados mentais próprios e alheios, aumenta a regulação emocional e diminui a necessidade de comportamentos autolesivos, promovendo maior qualidade de vida e domínio da angústia.
Palavras da especialista
Embora a autolesão possa ser entendida dentro do contexto das turbulências da adolescência, ela frequentemente indica a presença de patologias subjacentes que requerem intervenção de um psicólogo ou outro profissional de saúde mental. Mesmo na ausência de outros transtornos, o risco que este comportamento apresenta para o desenvolvimento posterior sadio indica a necessidade de atenção conjunta dos profissionais, pais, educadores e população em geral para a prevenção do problema.
Reconhecer a autolesão como um sinal de sofrimento psicológico profundo, e não apenas como uma fase passageira ou comportamento de busca de atenção, é essencial para fornecer o suporte adequado ao jovem e evitar complicações futuras.
Lembre-se: a autolesão é um problema de saúde mental que requer atenção e cuidado adequados.
Embora esse artigo trate da autolesão na adolescência, o comportamento não é exclusivo desta população e pode também ocorrer em outras etapas do desenvolvimento humano. Para enfrentar o problema, não hesite em buscar ajuda para você ou para alguém que você se importa.
Referências
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